Poeta: Luiz Eduardo da Silva Lima
Dona Orzina tem pele escura,
lenço branco na cabeça,
nos pés tamancos tortos,
gastos por andejar.
Sai longa, bem rodada,
e uma risada galponeira
de encher qualquer lugar.
Contavam os mais antigos
que sempre viveu ali.
Mesmo jeito, mesmo tranco,
varrendo o pátio, juntando lenha,
cuidando a horta, fazendo pão.
Das 6 ás 6, de porta aberta a porta fechada,
Não olhava nos olhos de quem
cruzasse na estrada.
Falava baixo, baixinho,
Era de poucas palavras,
porem de muitos suspiros.
Sem visitas, sem marido,
sem comadres… sem filhos para lembrar.
Não ia à missa, aos mortos não rezava.
Não olhava o horizonte,
por certo a ninguém esperava.
Quantas respostas estariam guardadas na casa de Dono Orzina?
Quantas respostas não teriam nem a pergunta?
De quem seria parente?
De onde viera sua gente?
Pra onde foram depois?
Por quê ficará sozinha?
Será que chegou já chegou só?
Ninguém sabia as respostas
na Vila do Cafundó.
Nesse povoado singelo,
pras bandas do Arroio Mau,
ninguém sabe o seu passado,
só um velho louco insiste,
por um relato oral,
que Dona Orzina é um perigo,
que já matou um general.
Devaneio ou lembrança,
de um velho mais de 80?
Conta história de criança,
que sempre viveu ali,
que sua mãe impunha medo,
cochichando um segredo
no seu ouvido de guri:
Não te aproxime da casa,
onde mora aquela moça.
Traz enredado na trança
segredos de outras vidas.
È bruxa, é feiticeira,
vive dando gargalhada,
a noite ninguém a vê
pois some na madrugada.
E os anos foram passando,
com seus invernos e verões,
os guris viraram homens
e as gurias, agora mães,
repassavam por cochichos,
mantendo viva na vila
crendices e maldições.
Tudo mudava com o tempo,
Mas Dona Orzina não mudava,
quanto mais ficava velha
mais aos outros espantava.
A casa pouco abria,
falava quase nada,
mais de 100 anos sozinha,
e que segredo guardava?
Dona Orzina não benzia,
não tinha cachorro, nem gatos.
Dormia em cama solteira,
Não tinha porta-retratos.
Sem registros, documentos,
cadernos, fotografias….
A quem avisar da morte
que aos poucos a consumia?
Sempre o mesmo ritual,
lenha, fumaça, fervido, pão.
A vassoura no quintal,
O cuidado com a Horta,
um mate junto a porta,
e uma gargalhada perdida….
Que acompanhava um suspiro
das lembranças da vida.
Um dia raiou o Sol,
as flores abriram todas,
os animais garanharam vida,
ciscando pelos terreiros.
Já chegava o Churero
com seu rito corriqueiro,
Trazendo carne pro almoço.
Três batidas na caroça
com o cabo gasto o mango,
“tripa gorda”, “ rin de ovelha”,
Tem “moella”e “chinchulin.
Quem quiser chegue pra ver…
Gritava pra Dona Orzina,
que sempre foi de querer.
Separou umas achuras,
enquanto o povo chegava,
e no mais já apeava com
uma bandeja forrada.
…Dona Orzina porta fechada?
Onde não há fogo, não há fumaça.
Pressupôs uma desgraça,
e num rompante de valente,
aos olhos de todas gente
entrou pedindo licença,
bateu firme na porta…
sem resposta ou ameaça.
Só o silencio o respondeu.
E de vereda toda crença
tomou seu imaginário,
toda história da vilinha
agora ganhava asa…
_Preciso de um voluntário
para arrombar esta casa.
O silêncio se agiganta
e os olhos buscam o vento.
E o velho louco levanta,
por um impulso tomado,
_ Eu vou no teu costado,
confio no meu evangelho.
Não me importa a bruxaria,
Se for doença ou feiticeira,
meta logo o pé na porta
vamo acaba com o mistério.
Enfim chegou o dia….
Assim, de repente,
como o sopro da morte
Que tira o calor da gente.
Naquela mansa manhã
seria desfeito o engodo
ou confirmada a lenda
da velha bruxa pagã?
Não se ouvia um só piar,
um cachorro latindo,
um relincho no potreiro,
ou uma fruta caindo…
Só os passos do churero
e do velho que ia rindo…
80 anos de espera
que hoje chegava ao fim.
Assombros da sua mãe
desde os tempos de mirim.
Com todo respeito e zelo
que pede a situação,
foram fresteando na porta,
buscando uma atenção.
Chamaram, batendo palma.
“Dona Orzina, estás em casa?
Dona Orzina, estás aí?”
E desta pergunta vazia,
quando silêncio parecia
que iria ser a resposta…
ouviu-se a velha risada,
seguida pelo suspiro.
Depois falando baixo, baixinho,
Uma voz pedindo ajuda…
“por favor alguém me acuda!
Pode entrar, não faço mal,
não sou bruxa ou feiticeira
como dizem por aí,
se com um segredo eu vivi,
agora que estou morrendo
eu preciso repartir.”
Abriram a porta os dois,
chamaram os outros depois,
o padre e o delegado.
O quinteto então formado
como forma um pentagrama.
O padre ao pé da cama,
o velho louco num canto,
paralisado de espanto,
o churero junto a porta
não perdia uma palavra
para espalhar o relato.
E o delegado, um mulato,
tomando nota da história.
“…Sabe moço, sempre fui só,
cheguei na vila do cafundó
quando ainda era menina,
preta, magra, sujinha,
Nem lembro como foi,
eu vinha de muito longe
numa carreta de boi,
partiram e eu fiquei,
nem falar eu falava,
quando alguém perguntava
eu corria e me acuava,
olhava os outros e copiava
o modo de se viver.
Fui crescendo, virei moça,
comendo o que a terra dava.
Fiz a horta, fiz cercado,
forno de barro e essa casa.
Aqui eu fui rainha,
uma Nzinga de Matamba.
Daquele tempo ninguém restou,
algum neto que sobrou,
que hoje beira os 80,
não me viram nem criança,
só sabem da “moça de trança
que mora naquela casa,
a que matou um general.
Como a lei é desigual
para uma pobre amojada,
Sem família, sem história,
sem ninguém para amparar.
Sem ninguém para contar
como foi a covardia,
Se o padre não deu ouvidos
Por que Deus me perdoaria?
Eu matei um general,
o filho dele também,
e outros que aqui entraram,
eu mandei todos pro além.
Queriam criar minha dor,
o filho do desamor,
que se criou não sei com quem.
Por isso peço perdão, pra todos.
Pro padre, a ti velho louco, pro delegado.
Não sou bruxa ou feiticeira,
eu sofri a vida inteira com o abuso engasgado,
Por isso o riso debochado de encher todo galpão
acompanhado de um suspiro para limpar meu coração.
Quero uma passagem de paz,
quero uma passagem de luz.
Para cada morte uma cruz
riscada atrás desta porta
onde se encontra o churero.
E para o espanto de vocês
eu tive muitas visitas
por isso a porta é xadrez. “
Falou e fechou os olhos como esperando a penitência,
como esperando a pena imposta mandada pela justiça,
como esperando o julgamento do velho louco da vila,
como esperando o churero dizer… algo de amigo.
Ninguém disse uma só palavra,
o delegado fez um fogo e depois queimou o relato,
o padre no anonimato,e o louco seguiu variando,
o chureiro fechou a casa,
ficaram os quatro e Dona Orzina,
pelo seu último suspiro, … esperando.